Por Padre João Medeiros Filho
A fome é um mal, que persegue a humanidade, há milênios. No Brasil, Josué de Castro debruçou-se sobre o problema nas décadas de 1930-1950. Deixou-nos um legado de importantes estudos, dentre eles: Geografia da Fome e Geopolítica da Fome. Definiu-a como “sucessora da escravidão, interessando a novos senhores.” Nos idos de 1960, ouviu-se o clamor de Padre Joseph Léon Lebret, frade dominicano francês, organizador do Instituto Internacional de Pesquisa e Formação em Educação e Desenvolvimento. Ali, fez reiterados apelos contra as desigualdades sociais, enfatizados numa frase lapidar: “No mundo atual, de três pessoas que vão a óbito, duas morrem de desnutrição e uma de indigestão.” Seu pensamento repercutiu muito no Concílio Vaticano II e suas ideias chegaram ao RN, graças à fulgurante inteligência de Otto Guerra e ao zelo pastoral de Dom Eugênio Sales. De lá para cá, sobejam discursos demagógicos e ações paliativas, buscando minorar esse drama humano. Citam-se estatísticas inexatas (fruto da retórica de palanques) sobre os famintos no Brasil. Candidatos e autoridades empunham tal bandeira, que tremula há decênios no horizonte de nossa pátria.
A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil lançou este ano a Campanha da Fraternidade sobre essa temática. Seu objetivo é sensibilizar a sociedade para enfrentar esse flagelo, que vitima uma multidão de indefesos. A Igreja inspira-se no exemplo de Cristo na multiplicação dos pães. O lema da Campanha é a frase evangélica: “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mt 14,16). Aliás, é a terceira vez que se aborda esse tema na Campanha da Fraternidade: em 1975, 1985 e 2023. Ela pretende ser uma aplicação prático-social da caridade e do Evangelho. “A fé sem as obras é morta” (Tg 2, 26). Cristo ensina aos discípulos a metodologia da ação: “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mt 14,16). No coração de Jesus, nunca habitou a indiferença. Ele sempre teve compaixão de todos. Sensibilizou-se e pediu aos seguidores que fizessem o mesmo. É assim que se deve agir. Não seria a venda de uma pequena quantidade de cinco pães e dois peixes, conforme alguns discípulos sugeriram (cf. Mt 14,17). O caminho é outro. Trata-se de viver a solidariedade.
A fome, além de uma tragédia, é uma vergonha. Como aceitar que no Brasil, considerado celeiro do mundo, haja tanta fome? Esta não é apenas um problema político, mas sobretudo ausência da verdadeira caridade, em que a consciência da fraternidade deveria sobressair. “Político algum vai resolvê-la, pois carece do verdadeiro sentimento de fraternidade”, afirmou Dom Helder Câmara. E Monsenhor Expedito Sobral arrematou: “Os políticos não irão solucionar o drama da fome, pois padecem da ausência de caridade. Neles, a prioridade reside em seus interesses partidários e conveniências pessoais.” A teimosia evangélica do “Pároco do Potengi” (Mons. Expedito) fez os governantes lutarem para acabar com o problema da escassez de água. Nas grandes secas nordestinas mostrou que a indigência alimentar é também um assunto de Igreja. Exige criatividade e ação. Eis a postura de Cristo no episódio da multiplicação dos pães. Ele não fez discursos teóricos diante da multidão faminta. Não saiu pela tangente, afirmando que não seria um problema seu, mas competia às autoridades civis. Mandou seus discípulos agir. A falta de pão é um contratestemunho. Ignora a dignidade humana. Dom Luciano Mendes de Almeida comentava que o Brasil padece de um grande paradoxo e equívoco: “Os cristãos pensam que os políticos vivem o Evangelho. Os políticos acham que os cristãos, pregando a caridade, os isentam de ações concretas em favor do povo.”
A carência de comida é um desafio eclesial e socioeconômico, que nos toca profundamente. É um dos resultados mais cruéis da desigualdade humana. A existência de um só faminto torna-nos injustos. Mas, a falta do alimento é também metafórica. Há sem dúvida, fome de Deus, desejo de estar com Ele, participando de seu amor e misericórdia. O Brasil de hoje está faminto de paz, verdade, respeito, concórdia e união. Jesus, rosto da comiseração do Pai, quer entrar em nossos corações para nos ajudar a buscar a fraternidade e a glória de Deus. No Juízo Final, o Senhor cobrará de todos, mormente daqueles de poder decisório: “Tive fome e não me destes de comer” (Mt 25, 35).