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Dom João Santos Cardoso
Arcebispo de Natal
O mandamento do amor aos inimigos, ensinado por Jesus, é um dos mais desafiadores e aparentemente paradoxais de sua mensagem: "Amai os vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam" (Lc 6,27). Assim nos ensina o Senhor, chamando-nos a transcender a lógica humana da retribuição e do ressentimento. Mas como é possível amar aqueles que nos prejudicaram, feriram, causaram-nos danos profundos e traumáticos, decepcionaram-nos e traíram, ou mesmo aqueles que defendem valores e crenças que nos parecem inaceitáveis?
Em seu livro, Quero que sejas, Halík afirma que Jesus não exige uma mudança instantânea de postura, mas sim uma decisão consciente e progressiva de não alimentar a inimizade. Para ilustrar essa ideia, ele recorre a uma lenda chassídica: um homem, mesmo diante de grandes provações, mantinha sua paz interior. Quando questionado sobre como conseguia permanecer sereno, respondeu: "Vocês devem estar falando com a pessoa errada. Nada sei daquilo que estão dizendo; jamais aconteceu algo de ruim na minha vida." Essa resposta não nega o sofrimento, mas revela uma escolha: a de não alimentar o ressentimento. Da mesma forma, a inimizade só persiste se for cultivada. Tanto a hostilidade quanto a amizade dependem da reciprocidade; quando recusamos nos vingar, a inimizade perde sua força e se dissolve.
Halík recorda outra história chassídica, contada por um rabino, que nos oferece uma chave valiosa para compreender o amor ao inimigo. Perguntado repetidamente sobre quando a noite termina e o dia começa, o rabino respondeu: "A noite chega ao fim e o dia se inicia quando conseguimos olhar para o rosto de qualquer pessoa e reconhecer nela um irmão ou uma irmã." Enquanto enxergarmos os outros apenas como inimigos, permaneceremos imersos na escuridão e no medo. É necessário transformar nosso olhar, um processo de conversão interior que nos permite superar a lógica da hostilidade. Richard Kearney, filósofo irlandês, também nos desafia ao propor que "olhemos nos olhos do monstro" e descubramos que ele não é tão diferente de nós. Esse exercício nos conduz à humanização do inimigo, reconhecendo sua dignidade, evitando cair na tentação de demonizá-lo. Somente ao confrontarmos nossos próprios medos e projeções conseguiremos romper o ciclo da inimizade e abrir espaço para a reconciliação.
A psicologia profunda de C.G. Jung complementa essa reflexão ao mostrar que projetamos nos outros aquilo que não conseguimos aceitar em nós mesmos. Muitas vezes, o que odiamos no inimigo são aspectos de nossa própria sombra. Esse mecanismo nos impede de reconhecer nossas falhas e nos aprisiona em um ciclo de ódio. O amor ao inimigo exige um trabalho interior para tomar consciência dessas sombras e desarmar a lógica da inimizade.
Jesus nos convida a perdoar, como recitamos no Pai-Nosso: "perdoa-nos as nossas ofensas, assim como perdoamos a quem nos tem ofendido". Perdoar não é um ato instantâneo, mas um processo que nos liberta do ressentimento. O perdão não significa esquecer o mal sofrido ou ignorar a injustiça, mas sim recusar-se a ser prisioneiro da mágoa e da vingança. Cristo nos dá o exemplo supremo ao perdoar aqueles que o crucificaram: "Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem" (Lc 23, 34). Seu ensinamento nos desafia a romper o ciclo do ódio e a trilhar o caminho da reconciliação. O amor ao inimigo exige um compromisso consciente de não alimentar a hostilidade. Somente assim deixamos de ser reféns das sombras que projetamos nos outros e nos tornamos verdadeiros instrumentos da paz.
Jesus não apenas nos ordena a amar os inimigos, mas também nos convida a abandonar o espírito da inimizade. Segundo Lucas (6,27-38), o amor ao inimigo não é passividade diante da injustiça, mas uma resposta ativa que rompe o ciclo da violência. "Oferecer a outra face" não significa aceitar a agressão, mas recusar-se a responder à violência com mais violência, escolhendo um caminho de resistência pacífica.
O amor aos inimigos é uma das exigências mais radicais do Evangelho, pois nos desafia a transcender nossas reações instintivas e nos convida a um amor incondicional, semelhante ao de Deus. Esse mandamento não apenas confronta nossas limitações humanas, mas também nos liberta do peso do ressentimento. Ele nos ensina que perdoar não é esquecer, mas uma escolha consciente de não permitir que o mal defina nossa existência. Seguir esse caminho é exigente, mas não impossível. Com a graça de Deus e a ação do Espírito Santo, podemos aprender a amar de maneira autêntica, perdoar sem reservas e superar as barreiras da inimizade, tornando-nos verdadeiros instrumentos da reconciliação e da paz.