Por Pe. Matias Soares
Pároco da Paróquia de Santo Afonso Maria de Ligório - Conj. Mirassol - Natal
O homem contemporâneo está marcado pelo cansaço (cf. Byung-Chul Han, “Sociedade do Cansaço”). Estamos sufocados por fazer coisas. A tirania do mérito está a escravizar uma existência mais humanizada. Temos que satisfazer o que os outros esperam de nós. Os filhos veem-se cobrados pelos pais vocacionalmente, estes últimos, por sua vez, querem oferecer bem estar material aos filhos, negando-lhes, muitas vezes, o seu tempo empático e afetuoso. Os casamentos são colocados à prova, porque todos almejam a satisfação das suas vontades, ideológicas e afetivas. Essas contraposições levam as pessoas à vida fragmentada, com suas neuroses e diluições. Ao esgotamento, não só físico, como também psíquico e espiritual. E o cultivo do espírito precisa do “ócio criativo”: a boa leitura, a oração, a meditação, a conversa simples e descompromissada etc. As crises de sentido adentram a humanidade e geram a desconstrução do Eu. A modernidade a bifurcou em pensante e material, levando-a à busca desesperada por uma felicidade imediata e efêmera. O ativismo frenético e desproporcional tem feito parte das jornadas de cada indivíduo. Quando não é no trabalho, tem sido na conexão permanente nas mídias sociais. Perdemos as nossas opções fundamentais; deixamos de ser sujeitos e passamos a ser objetos das lógicas de quem tem o poder econômico e tecnocrático.
Thomas Merton, na sua obra, “Homem algum é uma Ilha”, afirma que “tudo, na vida de uma cidade moderna, é calculado para impedir o homem de entrar em si mesmo e pensar nas coisas espirituais. Mesmo com a melhor das intenções, um homem espiritual vê-se exausto, amortecido e deprimido pelo constante ruído de máquinas e alto-falantes, pelo ar pesado e as luzes deslumbrantes de escritórios e lojas, e as constantes sugestões dos anúncios e da propaganda” (cf. pág. 108). Continua o monge, afirmando que “todo o mecanismo da vida moderna é engrenado para fugir de Deus e do espírito, em busca do deserto da neurose”. Segundo ele, “a agitação física é, portanto, inimiga do espírito”. Contudo, ele apresenta uma diferenciação entre agitação e trabalho, a saber: “O trabalho que ocupa o corpo e a mente é necessário à saúde do espírito. Pode ajudar-nos a rezar e a recolher-nos se trabalhamos como convém. A agitação, porém, destrói a utilidade espiritual do trabalho, e tende mesmo a frustrar-lhe a finalidade física e social. Ela é uma inútil e mal orientada ação do corpo e exprime a confusão interior de uma alma sem paz. O trabalho leva a paz à alma em que houver um mínimo de ordem e de compreensão espiritual. Ele a ajuda a voltar a vista para os seus fins espirituais e a realiza-los. Mas a razão última da agitação é esconder a alma de si mesma, disfarçar-lhe os conflitos interiores e a falta de rumo e induzir um falso sentimento de que ‘estamos lucrando’” (cf. Idem). Essa descrição de Merton traduz muito bem o quão é necessário, em nossos tempos, esse urgentíssimo cuidado com a nossa vida espiritual.
Na existência cristã, precisamos revisitar o nosso primeiro amor (cf. Ap 2,4). Só ele nos pode dar essa síntese ontológica. Só o amor é agregador e totalizador da condição humana. “Quando amamos, somos”. Santo Agostinho, pela via cristã, condensou o seu significado vital, comentando a Primeira Carta de São João (cf. 1Jo 3, 16. 23; 4, 7-11). O cultivo da nossa espiritualidade tem essa finalidade: É um caminho de memória e reencontro com o amor pleno de Deus por nós. O encontro com o Amor, já nos faz amante. É sempre uma busca de aquisição de um tesouro para a alma, que nos faz rico para Deus (cf. Lc 12, 21). Esse cuidado buscante tem sua fundamentação no Evangelho. Toda e qualquer espiritualidade genuinamente cristã tem nele a sua razão de ser (cf. J. M. Castillo, “Espiritualidade para Insatisfeitos”, pág. 17-19). A espiritualidade cristã consiste em viver de acordo com a ação do Espírito (cf. Lc 4, 18-19). Essa era a “espiritualidade de Jesus”. Ela o levava a estar em comunhão com a vontade do Pai (cf. Lc 22,42; Jo 17). Essa espiritualidade nos leva a sermos promotores da vida, sonhá-la e promove-la em plenitude. Nos insere na história e nos faz comprometidos com os valores do Reino de Deus (cf. Jo 10,10; Mt 5, 1-12). Nos integra e faz-nos integrados com as paixões do Mundo (cf. J. B. Metz, “Memória Passionis”). A cultura pós-moderna tem nos levado para um outro estilo de vida, que tende a nos “mundanizar”. O mundanismo é o fechamento às moções do Espírito e ao chamado que o Evangelho nos faz à “conversão diária e permanente”, a fim de que nos modelemos aos sentimentos e atitudes de Jesus Cristo (cf. Fl 2, 5-11).
O dinamismo desse cultivo da vida espiritual é exigido quando temos consciência da nossa dimensão antropológica transcendental. Talvez, aqui, more o grande desafio: A virada da modernidade para a hipermodernidade negou essa dimensão da condição humana, fazendo com que a “religião passasse a ser tratada só nos limites da razão” (cf. E. Kant). A Reforma Protestante pressagiou o distanciamento entre fé e razão e as conclusões do Iluminismo a levaram a termo. Pensar essa necessidade de integração entre o transcendente e o imanente, o sobrenatural e o natural, sintetizados numa antropologia integral e integradora ficou só no arcabouço epistemológico da teologia católica, especialmente confirmada na antropologia conciliar (cf. GS, 22). Existe uma interrelação das dimensões bio-psique-espiritual. Por isso, a concepção das formas do cultivo da formação espiritual das pessoas para a Igreja, não está reduzida a um aspecto da existência humana. Basta recordar a carta do Papa Francisco sobre a importância da literatura para a formação integral das pessoas. Mais recentemente, com a categoria da ecologia integral (cf. LS, cap. IV) a Igreja amplia essa concepção que situa o “fenômeno humano” (cf. Teillard de Chardin) como pertencente à totalidade da Criação.
A existência cristã no contemporâneo exige uma espiritualidade da relação. A sua fonte está nas relações trinitárias, para nós, cristãos. A sua concretização acontece no testemunho da vivência do amor. A sua forma eclesial encontra-se na espiritualidade de comunhão testemunhada pelo “estilo sinodal”. Ela reluz no mundo, quando nos tornamos capazes de diálogo e respeito pelas diferenças. Ela torna-se global, quando assumimos o “cuidado com a nossa casa comum”. Nestas formas de relação, encontramos as três vias que nos são apresentadas para que configuremos as nossas interações sociais, com a criação e com Deus (cf. LS, 66). Citando Bento XVI, Francisco afirma que existe uma “ecologia do homem”; pois este “também possui uma natureza, que deve respeitar e não pode manipular como lhe apetece” (cf. LS, 155). O olhar antropológico perpassa essa consciência que todos precisamos ter para o necessário cultivo da nossa condição humana na sua totalidade e de modo unidimensional.
A nossa atenção e abertura ao autocuidado, neste contexto e possibilidade, são, antes de tudo, uma consciência de liberdade, opção personalíssima de amor próprio e desejo de poder ‘ser’ mais, para estar plenamente em relação com os outros. O cultivo da vida espiritual é um modo de viver o tempo presente com subversividade diante da cultura do descarte, da negação do outro e do individualismo neurótico. Nesse sentido, “é preciso dizer que o objetivo procurado e perseguido pela espiritualidade cristã não é somente divinizar as pessoas, mas, juntamente com isso e, antes disso, ela tem como missão e tarefa humanizar o povo, os indivíduos, os grupos humanos e as instituições” (cf. J. M. Castillo, “Espiritualidade para Insatisfeitos”, pág. 110). Esse aprimoramento é artesanal e exigente. Nos coloca em situação de sensibilidade aos sinais dos tempos, lendo-os com a razão e o coração, nos tornando capazes de reformas pessoais e estruturais.
O cultivo da vida espiritual reveste e performa a nossa consciência cristã, tornando-nos vinculados à pessoa de Jesus Cristo (cf. Jo 15, 1-17). Eis o pináculo para onde precisamos nos voltar. Somos norteados por esse farol. A vida espiritual é a energia que fortalece o processo. Em nossos tempos, tão complexos e turbulentos, a nossa identidade cristã trilha um caminho mais existencial para ir ao essencial, que é a “lei da vida”. Segundo Thomas Merton, “ela – a lei da vida – no Novo Testamento da graça é a realização, pela caridade, dos desígnios de Deus nas consciências daqueles que correspondem aos impulsos da graça. A nova lei não é somente um código exterior de comportamento, mas uma vida interior, a vida mesma de Jesus, vivendo por seu Espírito naqueles que Lhe mantêm unidos pela caridade” (cf. “Homem algum é uma Ilha”, pág. 52-53). A autenticidade do cuidado com a vida interior tem que nos proporcionar essa conquista, como dom do Espírito e uma resposta humana. Desta forma, as nossas opções são constituídas e constitutivas de acontecimentos diários e escolhas cotidianas. Na raiz, o que estará em questão é a nossa verdadeira liberdade. Tenhamos presente esses propósitos e objetivos de aprimoramento da nossa personalidade, que ressignificam a nossa existência humana e cristã. Assim o seja!