Dom João Santos Cardoso
Arcebispo de Natal
No Capítulo IV de “Dilexit Nos”, o Papa Francisco explora a espiritualidade que nasce da devoção ao Sagrado Coração de Jesus. Ele parte das Sagradas Escrituras e reflete sobre o simbolismo da água como elemento de saciedade e purificação, relacionando-o ao lado trespassado de Cristo na cruz, de onde jorram água e sangue. O Coração trespassado revela não apenas a essência do amor divino para nossa salvação, mas também oferece aos fiéis um caminho para um encontro íntimo e transformador com o Senhor. Esse simbolismo bíblico exerceu um impacto profundo na fé cristã, com vários Padres da Igreja, especialmente da Ásia Menor, referindo-se à chaga no lado de Jesus como fonte da "água do Espírito", que representa a Palavra, a graça e os sacramentos (DN 102). Assim, o Sagrado Coração é, ao mesmo tempo, símbolo do amor divino e um convite para que as almas sedentas de paz se unam profundamente a Cristo e encontrem nele consolo ao contemplar seu amor sacrificial. Essa devoção inspirou o caminho espiritual de santos que, em suas experiências místicas, descobriram diferentes aspectos desse Coração que nos amou até o fim.
Santo Agostinho foi um dos primeiros a destacar o Sagrado Coração como um local de encontro pessoal e íntimo com o Senhor. Ele via o lado ferido de Cristo não apenas como uma fonte de graça e dos sacramentos, mas como símbolo de uma união profunda com Deus. Para Agostinho, esse encontro é a fonte da mais preciosa sabedoria: conhecer Cristo. Ao inclinar sua cabeça no peito de Jesus na Última Ceia, João, o discípulo amado, aproximou-se desse "lugar secreto" de sabedoria, que vai além da contemplação intelectual (DN 103).
São João Evangelista descansou no peito de Cristo, mas em sua humildade não detalhou essa experiência nos Evangelhos, deixando aos fiéis a liberdade de também descansar no coração de Jesus. Percorrendo essa via mística, Santa Gertrudes de Helfta descreveu sua experiência de repouso espiritual sobre o coração de Jesus, onde encontrou calor e consolo. Sua experiência inspirou gerações a buscar uma comunhão profunda com o Senhor.
Santa Catarina de Sena fala do Coração aberto de Cristo como um espaço de comunhão íntima, onde o sofrimento de Jesus permite um encontro pessoal com seu amor redentor. Santa Catarina nos recorda que, mesmo sem testemunharmos o sofrimento de Cristo, somos chamados a experimentar profundamente esse amor em nossos corações.
São Francisco de Sales também abraçou a espiritualidade do Coração de Cristo e inspirou manifestações de devoção em Paray-le-Monial, vendo nesse coração uma fonte de paz e consolo e um chamado para amar com generosidade e pureza. Santa Margarida Maria Alacoque, em suas visões místicas, sentiu o Sagrado Coração como um fogo ardente de amor e misericórdia, difundindo a devoção como um chamado à reparação e ao amor profundo por Cristo.
São Cláudio de La Colombière, por sua vez, viu a devoção como um caminho de humildade e abandono em Deus, onde a verdadeira contemplação do Coração de Cristo liberta da complacência e leva à paz e segurança. Santa Teresa do Menino Jesus encontrou nesse coração um amor terno e incondicional, sentindo-se acolhida e fortalecida, e expressando sua devoção com ternura e confiança.
O lado ferido de Cristo é, por conseguinte, uma porta aberta de amor divino que acolhe e transforma. Para os fiéis, o Coração de Cristo é um chamado ao amor e à compaixão, uma fonte de graça e inspiração para servir o próximo. Conforme o Papa Francisco, essa devoção é um convite para a comunidade cristã consolar e ser consolada, numa reciprocidade amorosa com Cristo, em que o amor do Sagrado Coração se torna um chamado para servir e amar profundamente.