
Dom João Santos Cardoso
Arcebispo de Natal
Durante o tempo quaresmal, a Igreja nos convida a um longo retiro espiritual em preparação para a Páscoa do Senhor. Por ser tempo litúrgico favorável a nossa salvação, para nos auxiliar no caminho de pessoal da conversão, a Igreja no Brasil, há mais de sessenta anos, propõe a Campanha da Fraternidade, que nos convida a refletir sobre realidades onde a fraternidade é ferida, desafiando-nos a assumir compromissos concretos de transformação. Em sintonia com essa vivência, a Campanha da Fraternidade 2025 nos interpela com o tema "Fraternidade e Ecologia Integral", e o lema inspirado no Gênesis: "Deus viu que tudo era muito bom!" (Gn 1,31). Diante da urgência da crise socioambiental, somos chamados a uma conversão ecológica, compreendida não apenas como mudança interior, mas como um novo estilo de vida, sustentado por uma espiritualidade ecológica, com força sobre nossos hábitos e atitudes.
A espiritualidade pode ser entendida como uma profunda experiência de relação com Deus de onde provém a motivação interior, um espírito, que transforma a vida e orienta o agir humano. No contexto da ecologia integral, espiritualidade ecológica é a vivência da fé em comunhão com toda a criação, reconhecendo Deus como Criador e guardião da vida. Essa espiritualidade se fundamenta na gratidão a Deus pelo dom da criação confiado a nossa responsabilidade.
O livro do Deuteronômio (26,4-10) apresenta um exemplo concreto dessa espiritualidade. Ao oferecer as primícias da colheita a Deus, o povo de Israel expressa gratidão pelo dom da terra e reconhece que tudo provém do Senhor. Esse gesto manifesta a fé e a consciência de que a criação é um dom divino, que nos sustenta e exige cuidado e responsabilidade para evitar sua exploração predatória.
A espiritualidade ecológica nos convida a enxergar a terra não como um mero recurso a ser utilizado, mas como um presente divino que requer respeito e compromisso com sua preservação. Assim, ao reconhecer Deus como origem de todos os bens, somos chamados a cultivar uma relação harmoniosa com a criação, promovendo um consumo responsável e uma economia que respeite os ritmos naturais da vida, evitando desperdício e degradação ambiental. O exemplo dos israelitas, citado no Livro do Deuteronômio, nos interpela a transformar nossa relação com a criação em um louvor constante ao Criador, assumindo o compromisso de cuidar da Casa Comum. A espiritualidade ecológica também se expressa em pequenos hábitos cotidianos, como agradecer a Deus pelo alimento e partilhá-lo em fraternidade.
As três tentações de Jesus no deserto (Lc 4,1-13), à luz da espiritualidade ecológica, nos convidam a sermos fiéis a Deus e à sua Palavra, rejeitando o consumismo, a busca desenfreada por poder e glória, bem como a instrumentalização do sagrado. Ao vencer o tentador, Jesus nos ensina que a verdadeira vida não se resume à satisfação imediata de nossas necessidades e na conquista de bem-estar econômico, mas se fundamenta na confiança plena em Deus e sua Palavra.
Após jejuar durante quarenta dias e quarenta noites, Jesus sente fome, uma condição que torna qualquer ser humano vulnerável e inclinado a buscar, a qualquer custo, a satisfação de suas necessidades imediatas. Aproveitando-se dessa fragilidade, o diabo o desafia: 'Se és Filho de Deus, manda que esta pedra se transforme em pão' (Lc 4,3).
O tentador propõe que Jesus utilize seu poder divino para resolver imediatamente o problema da fome, sem considerar o plano do Pai. No entanto, a resposta de Jesus – 'Nem só de pão vive o homem' (Lc 4,4) – nos ensina que o ser humano não pode ser reduzido apenas a suas necessidades materiais e econômicas. O ser humano tem uma fome ainda mais profunda: fome de Deus, de sentido, de eternidade, de beleza, de amor e de comunhão. Embora o pão seja essencial para a vida, o ser humano não pode ser reduzido ao consumo de bens materiais, a vida humana é sustentado também pela comunhão com Deus e pelo respeito à sua obra.
A primeira tentação de Jesus nos alerta sobre o perigo do consumismo desenfreado e da exploração predatória da natureza. Na ânsia de satisfazer desejos imediatos e garantir lucro e conforto, muitas vezes agimos como se os recursos naturais fossem inesgotáveis, ignorando o impacto de nossas escolhas sobre o equilíbrio da criação e a vida das futuras gerações.
O Papa Francisco, na Encíclica Laudato Si’, nos recorda que a crise ecológica está intimamente ligada à crise antropológica, ética e social, exigindo de nós uma profunda conversão de mentalidade e de estilo de vida, baseado na sobriedade, na gratidão ao Criador, no cuidado da Casa Comum e na fraternidade universal. Assim como Jesus rejeitou a lógica do imediatismo e da autossuficiência, somos chamados a superar a mentalidade utilitarista que transforma tudo – inclusive a natureza – em mero objeto de exploração, e a redescobrir o valor da criação como dom de Deus, que deve ser cuidado com gratidão e responsabilidade.
A lógica do "vale tudo" pelo bem-estar econômico tem levado à destruição da biodiversidade, ao desperdício de recursos e ao aumento das desigualdades sociais. A natureza, em vez de ser reconhecida como um dom divino a ser cuidado, tem sido transformada em mercadoria.
Diante dessa realidade, a conversão quaresmal não pode ser apenas um movimento interior, mas deve expressar-se externamente através de uma conversão ecológica, do consumo responsável e do compromisso efetivo com o cuidado da Casa Comum.
A conversão ecológica nos estimula a assumir uma espiritualidade ecológica, reconhecendo a presença de Deus na Criação e cultivando uma relação de respeito e gratidão com tudo o que Ele fez e nos desafia a repensar nosso estilo de vida e a assumir práticas sustentáveis, como: evitar o desperdício de alimentos e reduzir o uso de plástico e outros materiais descartáveis; praticar a reciclagem e o descarte adequado dos resíduos; preservar os recursos naturais e promover o uso consciente da água e da energia, adotando fontes renováveis; sensibilizar pessoas, comunidades e famílias sobre a importância do cuidado com a Casa; apoiar iniciativas de economia solidária e ajudar os mais pobres, que são os primeiros afetados pela degradação ambiental.
O Papa Francisco, na encíclica Laudato Si’, denuncia a cultura do descarte e a mercantilização da natureza. Ele nos recorda que "tudo está interligado" e que o modelo econômico baseado na exploração insustentável dos recursos naturais gera desigualdades sociais e degradação ambiental. Por isso, a conversão ecológica não é apenas um apelo ao uso consciente dos bens, mas uma transformação profunda da nossa relação com Deus, com os outros e com a criação.
A conversão ecológica é um compromisso permanente, um testemunho de fé que se expressa no amor à criação e na busca pelo bem comum. Como nos ensina a Laudate Deum, é urgente que mudemos nossos estilos de vida e modelos de produção para preservar a vida das gerações futuras. Que nossa fé nos impulsione a viver uma espiritualidade que reconhece e respeita a interdependência de toda a criação.