O mundo não gira, capota: a volta do “empobreça o seu vizinho”
- pascom9
- há 1 dia
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Diác. Paulo Felizola
Paróquia de Nossa Senhora do Ó – Nísia Floresta
Atualmente a imprensa mundial tem dedicado espaço considerável à crise internacional provocada pelas tarifas de reciprocidade impostas pelo governo dos Estados Unidos da América, alegando não ser aceitável o, considerado, alto déficit comercial com o resto do mundo, em especial com a China.
Sob vários aspectos essa decisão do governo norte americano tem recebido críticas, algumas elogiosas e outras que revelam alto grau de preocupação com a paz, em uma ponta, ou com a grave crise econômica a ser desencadeada, em outra. Neste breve texto, não pretendo esgotar o assunto, mas apenas refletir sobre uma ideia há muito já superada, mas que ressurge com todo o vigor na base dessa atitude norte americana: a ideia econômica mercantilista da necessidade de empobrecer os concorrentes.
Em resumo, o governo americano alega a necessidade de proteger a indústria americana como meio para aumentar a oferta de empregos no território americano, incentivando uma relocalização das empresas em território americano, para tanto se faz necessário adotar uma política nacionalista de proteção industrial ao dificultar a importação de bens materiais, impondo-lhes tarifas.
Observa-se, no entanto, que as tarifas de reciprocidade recaem, apenas, sobre as mercadorias, ou seja, tem por objetivo influenciar no resultado da balança comercial dos Estados Unidos com o resto do mundo. A lógica seria, portanto, ao inverter o resultado da balança comercial, deixando de ser deficitária para ser superavitária, os Estados Unidos estariam deixando de enviar dólares para o exterior, o que significaria um processo de enriquecimento interno em detrimento dos demais países que, por outro lado, empobreceriam e se tornariam, cada vez mais dependentes da economia norte americana. Olhar essa postura norte americana, na foram como está sendo exposta, nos remete à era mercantilista, tempos em que, na sua forma comercial, o capitalismo dava seus primeiros passos.
A transição do regime feudal, caracterizado por uma economia estática e contrária ao lucro, vigente na idade média, para o dinâmico regime capitalista do século XV e seguintes, foi marcada por um conjunto de mudanças que ficou conhecido como a Revolução Comercial. Para a nova doutrina econômica que sustentou essa revolução, chamada de Mercantilismo, o ouro e a prata era a forma mais desejável de riqueza, ou seja, enriqueceria quem fosse capaz de acumular esses metais. No entanto, para acumular esses metais, era necessário a obtenção de excedente de exportações (superávit comercial). Como os pagamentos eram feitos apenas com moedas cunhadas em ouro ou prata, era necessário,mportanto, registras mais entradas do que saídas. Ou seja, o lucro de um representa o prejuízo de outro. Dizemos, assim, que todo lucro de alguns só será possível se houver o empobrecimento de outros, o que, por sua vez estimulou o nacionalismo mercantilista, cuja consequência inevitável foi o estímulo ao militarismo e o desencadeamento de numerosos e intermináveis conflitos bélicos que caracterizaram todo o período mercantilista.
Para promover seus interesses comerciais, os mercantilistas acreditavam no livre comércio dentro do país, isto é, opunham-se a impostos internos, taxas e outras restrições sobre o movimento de bens, o que não quer dizer que eram favoráveis à entrada de qualquer pessoa no ramo do comércio, motivo de inúmeros conflitos internos nas metrópoles.
A dominação e exploração de colônias foi outra marca importante da doutrina mercantilista, na medida em que a relação de monopólio comercial da metrópole com a colônia significava lucros garantidos, pois a colônia era submetida a uma relação de trocas na qual ela não controlava o preço do que vendia e muito menos o preço do que, obrigatoriamente, comprava, aprofundando cada vez mais a relação de dependência em relação à metrópole.
Do ponto de vista político e social, a doutrina mercantilista favorecia a existência de um governo centralizado forte para garantir a regulamentação dos negócios, ou seja, garantir uma regulamentação nacional uniforme. Dessa maneira, a doutrina mercantilista favorecia a prática do ABSOLUTISMO, justificado pela afirmação de que em um estado natural, no qual o comportamento humano, somente, possui como objetivo a mera autoconservação, ou egoísmo, de cada indivíduo, se alguma vez se tornar possível sua realização integral, decorreria uma guerra geral e desagregadora entre os seres humanos[i]. Portanto, se os atos humanos não possuíssem outro objetivo natural que não o egoísmo, seria impossível a constituição da sociedade sem a intervenção coercitiva do Estado.
Desse modo, a política não seria considera simplesmente como a atividade ordenadora de uma sociedade que extrai seu próprio fundamento e seu próprio princípio de uma tendência natural e espontânea dos homens no sentido da construção de um tecido de relações recíprocas estáveis. A política seria convertida no meio pelo qual todos os homens são encaminhados pelo temor, como contrapartida a uma tendência natural à desagregação. Ou seja, a política chegaria a ser a própria fonte da vida social. Portanto, inexistiria uma sociedade civil que, em sua ordem natural, precederia, logicamente, ao Estado. Ao contrário, seria exatamente em virtude da constituição desse Estado que a sociedade se formaria.
Consequentemente, a sociedade subsistiria apenas enquanto os homens renunciassem à própria liberdade, ou seja, enquanto os homens renunciassem às suas próprias tendências destrutivas em favor da autoridade estatal, qualquer que fosse a forma pela qual esta fosse configurada constitucionalmente.
Chega a ser até alarmante vermos aquela que é cantada e decantada como a maior democracia retroceder a tempos absolutistas, tentando impor um protecionismo econômico injustificado, inclusive pela via da ameaça de anexar estados nacionais independentes, na intenção de se transformar a única metrópole dos tempos pós-modernos e manter, com os demais países, relações coloniais de subordinação. O mundo não está mais girando, já está capotando.
[i]Segundo Thomas Hobbes, no estado de natureza os homens podem todas as coisas e, para tanto, utilizam-se de todos os meios para atingi-las. Conforme esse autor, os homens são maus por natureza (o homem é o lobo do próprio homem), pois possuem um poder de violência ilimitado.