Dom João Santos Cardoso
Arcebispo de Natal
“Saudade” é um vocábulo típico da língua portuguesa. Segundo Fernando Pessoa, “Saudades, só portugueses conseguem senti-las bem. Porque têm essa palavra para dizer que as têm” (PESSOA, F. Quadras ao Gosto Popular, 1965, p. 110). Considerada intraduzível, a palavra "saudade" pode ser aproximada por termos de outras línguas europeias que capturam aspectos de seu significado. O termo mais comum para traduzi-la é “nostalgia” (espanhol, inglês, italiano) ou “nostalgie” (alemão e francês). Embora “nostalgia” não abarque completamente o complexo conceito de "saudade", reflete facetas desse sentimento, como o desejo, acompanhado de melancolia, tristeza e dor, de rever algo ou alguém distante, ausente ou perdido.
Entretanto, “nostalgia” não equivale a “saudade”. Esta possui uma profundidade e complexidade semântica maior. Nem sempre a saudade está associada à melancolia, tristeza e dor. Muitas vezes, ela permite tornar presente, mesmo que apenas na memória, o que se foi, suprindo a ausência de uma pessoa, lugar ou momento. A saudade alimenta a esperança e transforma-se em anseio por algo que, em muitos casos, não pode ser recuperado ou revivido, exceto na lembrança e imaginação. Frequentemente, aponta para o passado ou para uma idealização de algo inalcançável. A melancolia que pode acompanhá-la torna-se contemplativa, levando à introspecção e à valorização do vivido. Além disso, a saudade entrelaça memória e amor, preservando momentos e relações como eternos.
Rubem Alves, em sua crônica “Comemorar, Recordar”, define saudade como “a presença de uma ausência”, um elo que transcende a mera lembrança: “Saudade é a inclinação da alma na direção das coisas amadas que se perderam e continuam presentes como dor”. Ele descreve a saudade como um sofrimento essencial para preservar a memória do que foi amado, afirmando que o esquecimento seria uma traição ao amor. Alves narra a história de um homem que, dilacerado pela perda, recusa a oferta dos deuses de esquecer sua amada, pois a dor mantém viva sua memória. Esse ato reforça a ideia de que o sofrimento da saudade sustenta a presença simbólica do que foi perdido. Assim, o sofrimento não é um fardo a ser eliminado, mas parte essencial da experiência de amar. Alves também explora a conexão entre “comemorar” e “recordar”, vinculando-as à raiz latina “cor” (coração), e ressalta que recordar vai além do exercício mental, envolvendo profundamente o ser nas memórias que tocam o coração.
Carlos Drummond de Andrade, em seu poema “Ausência”, aborda a saudade como um sentimento que transcende a perda: “Por muito tempo achei que a ausência é falta. E lastimava, ignorante, a falta. Hoje não a lastimo. Não há falta na ausência. A ausência é um estar em mim.” Já Mário Quintana, em tom lapidar, afirma: “O passado não reconhece o seu lugar: está sempre presente.” (Poesia Completa).
Florbela Espanca, em sua coletânea Soror Saudade (1923), faz da saudade um tema central de sua poética, transformando-a em um elo entre o passado e o presente, entre o amor e a dor. No poema “Fanatismo”, ela exprime: “Minh’alma, de sonhar-te, anda perdida, meus olhos andam cegos de te ver, não é sequer a raiva de te perder, nem a saudade de jamais ser tida...” Entretanto, para Florbela, a saudade não é apenas a lembrança do que se foi, mas um sentimento que preserva a vitalidade do que foi amado. Assim, a dor da saudade torna-se uma forma de eternizar o amor.
Guimarães Rosa, por sua vez, aborda a saudade como uma condição existencial, um elo espiritual entre o ser humano e o cosmos. Para ele, a saudade não se limita à perda, mas é também uma experiência de plenitude. Em seu livro João Guimarães Rosa e a Saudade, Susana Kampff Lages explora essa complexidade, revelando como o autor transcende a dor e transforma a saudade em um estado de conexão e transcendência. Lages afirma que, na obra de Guimarães Rosa, saudade é um sentimento que une passado, presente e futuro, convidando o leitor a abraçar as ausências como parte essencial da experiência humana.
A saudade, além de seu aspecto emocional, possui uma dimensão filosófica e existencial. Remete ao eu partido, à transcendência e ao mistério, como expressa, de forma paradoxal, Fernando Pessoa em O Livro do Desassossego: “Ah, não há saudades mais dolorosas do que as das coisas que nunca foram!” O anseio por algo inalcançável reflete o desejo pelo paraíso perdido e pela plenitude do eterno. Assim, a saudade torna-se um sentimento que transcende o tempo, um elo entre o finito e o infinito.
Independentemente da cultura ou idioma, a saudade manifesta a experiência universal de sentir a falta de algo ou alguém que permanece vivo na memória e no coração. Esse sentimento, que combina ausência, desejo e introspecção, transcende fronteiras e se torna um elo entre passado, presente e futuro. Na poética de Florbela, na filosofia de Rubem Alves e na transcendência de Guimarães Rosa, vemos como a saudade é capaz de unir dor e beleza, melancolia e esperança, tornando-se um dos sentimentos mais profundos e humanizadores da experiência humana.